Números artificiais?
Diante da inflação alta, especialistas calculam as distorções causadas pela ausência de correção monetária nos balanços

numeros-artificiaisO Brasil está prestes a completar 20 anos desde o fim da obrigatoriedade da correção monetária de demonstrações financeiras. A prática foi extinta em 1995. Com a estabilização promovida pelo Plano Real, implantado no ano anterior, o governo rumou em direção à desindexação da economia. As empresas brasileiras livraram-se, assim, do reconhecimento dos efeitos da inflação em suas demonstrações financeiras — a despeito de o IPCA acumulado atingir 320% de 1º de janeiro de 1996 ao fim de maio de 2015. A medida foi reafirmada em 2007, com a edição da Lei 11.638. O diploma inseriu o Brasil no grupo de países usuários das normas internacionais de contabilidade, os IFRS, que também dispensam a correção. O fantasma da hiperinflação foi embora, mas o da inflação persiste. E, com ele, o desconforto com os efeitos da ausência da correção sobre a autenticidade dos lucros e, por consequência, sobre a distribuição de dividendos.

Bastam alguns exemplos para clarear os impactos das correções de preços. Se fosse levada em conta a inflação de 40% acumulada entre os anos de 2009 e 2014, Lojas Marisa e Natura teriam registrado despesas inflacionárias de R$ 166 milhões e de R$ 227 milhões, respectivamente. Portanto, o valor de seus bens foi corroído pela inflação. Em sentido oposto, a TOTVS teria obtido lucro inflacionário de R$ 58 milhões no mesmo período — o efeito é resultado do fato de o passivo estar mais exposto à inflação do que o ativo. “Isso nos dá uma ideia do efeito não demonstrado nos balanços”, observa o advogado Edison Fernandes, sócio do escritório Fernandes Figueiredo e autor dos cálculos. Em sua avaliação, a companhia com lucro inflacionário poderia, em tese, ter distribuído mais dividendos. Já a que registra perda com a inflação pode ter sido generosa demais ao pagar proventos.

Os cálculos levaram em conta as antigas regras de correção monetária de balanços (CMB) adotadas no Brasil. Elas corrigiam os valores dos ativos permanentes e do patrimônio líquido, pois ambos não estão sujeitos à corrosão inflacionária. As diferenças só não foram maiores graças ao padrão contábil internacional. Ao adotá-lo — em 2009, voluntariamente, e a partir de 2010, de forma compulsória —, as companhias puderam reavaliar seus ativos. Como estavam contabilizados a custo histórico, o ajuste permitiu, numa tacada única, aproximar o valor dos bens de suas respectivas correções.

A falta de ajuste monetário nos balanços afeta não só o lucro líquido e a distribuição de proventos como a remuneração variável de administradores. Por essa razão, especialistas alertam para os riscos de ela prejudicar a saúde financeira das companhias. Um estudo publicado em 2007 analisou o impacto do fim da correção sobre os resultados das corporações ao longo dos primeiros anos do Plano Real (de 1996 até 2004). De acordo com seu diagnóstico, a desconsideração dos efeitos inflacionários distorceu o lucro das 255 empresas da amostra com nível de confiança de 99%. Marcelo Augusto Ambrosini, autor da pesquisa, mostrou que empresas dos setores de construção, comércio, têxtil e máquinas apresentaram ganhos, mas teriam tido prejuízo caso levassem em conta a inflação. “Os gestores dessas companhias devem atentar para a decisão sobre os dividendos, sob pena de causarem a descapitalização da organização”, alertava Ambrosini.

O impacto da inflação, no entanto, não está restrito ao lucro. “A não correção monetária é uma forma discreta de produzir impairment dos ativos”, alerta o professor Eliseu Martins, da FEA-USP. O conceito de “impairment”, traduzido como “deterioração”, é usado na contabilidade para apontar redução no valor recuperável de ativos imobilizados e intangíveis. Companhias que identificam uma geração de caixa para determinado ativo inferior ao valor pelo qual ele está registrado devem promover a baixa contábil da diferença.

Na última temporada de balanços anuais, ganhou destaque o impairment da Petrobras. Sob os efeitos das investigações da Operação Lava Jato, conduzida pela Polícia Federal, a petroleira reconheceu R$ 44,6 bilhões em perdas de ativos. A cifra chamou atenção pela monta, mas poderia ter sido ainda maior. Se estivessem sujeitas à correção monetária de balanços, as perdas com impairment subiriam cerca de R$ 25 bilhões, totalizando quase R$ 70 bilhões, segundo os cálculos de um especialista. Além da inflação de 40% acumulada de 2009 até 2014, um aumento de 8,97% é esperado para este ano, de acordo com o Boletim Focus de 19 de junho, divulgado pelo Banco Central (BC).

Novas demandas
Ao mesmo tempo em que os preços sobem, produzindo balanços cada vez mais distantes da realidade das companhias, são poucas as chances de reversão da prática contábil. O padrão IFRS não tem regras aplicáveis a cenários de inflação alta — possui apenas para os casos de hiperinflação. De acordo com o IAS 29, regulador do tema, a companhia ganha o aval para o ajuste se estiver inserida numa economia com taxa de inflação acumulada no triênio de 100%. Também é preciso a maior parte da população manter ativos não monetários como investimento, como imóveis; os preços estarem cotados em moeda estável; e haver indexação de juros, salários e preços. O quadro é tão remoto que o CPC 42, norma brasileira equivalente ao IAS 29, ainda nem foi editado.

No entanto, uma fagulha de esperança foi acesa este ano, quando os argentinos levaram ao International
Accounting Standards Board (Iasb), órgão responsável pela emissão das normas IFRS, uma proposta de reforma do IAS 29. O pleito, no entanto, foi engavetado pelo board do Iasb em abril. Entre os que acompanham o assunto, há a impressão de o Iasb, preponderantemente composto de representantes de países desenvolvidos, desconhecer o impacto da inflação nas economias emergentes.

Entre os brasileiros, a demanda tampouco é consenso. Do ponto de vista conceitual, para Edison Arisa, sócio de auditoria da PwC Brasil e coordenador técnico do Comitê de pronunciamentos contábeis (CPC), a norma deveria contemplar os casos de inflação alta. “A exposição por um longo tempo a taxas de inflação, ainda que não à hiperinflação, pode influenciar as demonstrações financeiras e, eventualmente, o entendimento do leitor”, observa. Roberto Battaglioli, gerente de contabilidade da Duratex e vice-presidente da Comissão de Assuntos Contábeis (Canc) da Abrasca, é mais reticente à ideia. Ele observa que as demonstrações financeiras já têm como capturar ajustes de preços decorrentes de inflação e juros por meio do ajuste a valor presente. Ao calculá-lo, usa-se uma taxa de desconto com essas variáveis. Há ainda um efeito colateral da correção de balanços: sua adoção se torna uma evidência para a indexação da economia. “O risco é aumentarmos a cultura inflacionária”, pondera Arisa.

A falta de ajuste monetário nos balanços afeta não só o lucro líquido e a distribuição de proventos aos acionistas como a remuneração variável de administradores. Por essa razão, especialistas em contabilidade alertam para os riscos de ela prejudicar a saúde financeira das companhias

Além da inflação
A discussão, no entanto, está longe de acabar. Não é apenas a inflação que distorce os números apresentados nas demonstrações financeiras; a oscilação dos juros e o vai e vem do câmbio também merecem a atenção de quem enxerga a demonstração financeira como uma fonte de dados estratégicos das companhias.

Atualmente, um grupo de países asiáticos reivindica ao Iasb uma nova norma de contabilização dos efeitos do câmbio sobre as dívidas de longo prazo. O pleito vai ao encontro do perfil de muitas das empresas da região: endividamento elevado, a perder de vista, e em moeda estrangeira. O reconhecimento imediato das oscilações cambiais, conforme feito hoje, indicaria uma visão de curto prazo da norma contábil e atrapalha a percepção do mercado sobre o desempenho da companhia. Isso ocorre pois o efeito do câmbio é reconhecido integralmente no resultado de cada período, enquanto a dívida que gerou o ajuste não será paga imediatamente. “A proposta é a variação cambial da dívida de longo prazo não afetar diretamente o patrimônio líquido e ser apropriada ao resultado, de forma diluída, ao longo da vida útil do contrato”, explica Martins.

No Brasil, também há a preocupação com os efeitos do câmbio sobre as dívidas de longo prazo. E com um ponto além:
o mau uso da chamada da contabilidade de hedge (conhecida pelo termo em inglês, hedge accounting). A prática, regulada pelo CPC 38, sobre instrumentos financeiros, permite às empresas reduzir o impacto provocado por variações, como as do câmbio sobre despesas, desde que essas mesmas oscilações gerem fluxo de caixa positivo futuro.

O uso do hedge accouting é mais comum entre as empresas que pretendem se blindar das oscilações cambiais. É possível uma companhia com dívida em moeda estrangeira usar o fluxo futuro de suas próprias exportações para neutralizar os efeitos da alta do dólar. Não fosse a técnica, com a alta da moeda americana, o aumento da dívida impactaria o resultado de forma imediata. O problema não está na ferramenta, e sim na forma como é usada. “O que vemos é uma aplicação oportunista da regra”, relata Tadeu Cendón, sócio da PwC. Algumas empresas adotam a técnica quando a instabilidade cambial ocorre, mas a abandonam quando a moeda se estabiliza. Da mesma forma, não a adotam quando o movimento oposto acontece, ou seja, as dívidas são reduzidas por um câmbio mais favorável, assim como as receitas. “É preciso mais consistência no uso”, sugere Edison Fernandes. Em sua avaliação, a empresa que incorpora a técnica deveria mantê-la, ao menos, ao longo de um exercício completo, além de informar ao mercado porque deixou de adotá-la e quais seriam os efeitos se ainda estivesse em uso.

Ginásticas contábeis pontuais podem prejudicar o trabalho dos analistas de investimentos que acompanham ações. Para o gerente de análise do Banco Fator, Daniel Utsch, as empresas acabam preparando seus balanços com foco no curto prazo e deixando de lado informações estratégicas. “O analista quer sempre saber apenas duas coisas: o que aconteceu no período e como projetar o que acontecerá”, resume. “O hedge accounting complica essa tarefa”, completa. Especialmente em tempos de crise econômica, o melhor caminho a ser seguido é o da transparência. “As empresas poderiam aplicar o mesmo padrão de disclosure utilizado ao falar de investimentos, por exemplo, para o fluxo de caixa”, sugere.

“A grande vantagem do IFRS é exigir mais julgamento na preparação das demonstrações financeiras. O problema é o ser humano”, provoca Fernandes. Para solucionar o excesso de manejo por parte dos preparadores, Eliseu Martins tem a sugestão definitiva: a edição de uma nova norma contábil que diga “fica extinto o regime contábil da conveniência”. Não parece uma má ideia.

Ilustração: Grau 180.com


30-31Contabilidade na crise foi o tema do terceiro encontro do Grupo de Discussão Contabilidade, realizado em maio, em São Paulo.


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