A contabilidade cai na real
Lei nova revela informações preciosas sobre as companhias e afeta o trabalho dos analistas

, A contabilidade cai na real, Capital AbertoO primeiro ano no qual as companhias brasileiras tiveram de publicar suas demonstrações financeiras consolidadas de acordo com a Lei 11.638 — criada para harmonizar as regras brasileiras com as internacionais (International Financial Reporting Standards — IFRS) — mostra que a contabilidade, quem diria, ficou “interessante”. Diante de plateias um tanto céticas, era justamente isso o que sempre pregava um dos evangelizadores das normas internacionais no País, o doutor em ciências contábeis Nelson Carvalho, da Universidade de São Paulo. A safra de balanços de 2008 comprova que o professor tinha razão. Informações inéditas sobre as empresas começam a vir à tona. Mais do que expostas, as novidades se mostram relevantes.

O caso da Cesp, concessionária de energia elétrica de São Paulo, é um dos mais claros exemplos do impacto da linguagem internacional na percepção que analistas e investidores têm sobre as empresas. Para a elaboração do balanço do ano passado, assim como as demais companhias abertas brasileiras, a Cesp realizou o teste de “impairment” de seus ativos. Prevista no primeiro pronunciamento do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) — órgão que edita as normas internacionais traduzidas para o Brasil —, a prática visa a assegurar que os ativos não estejam registrados contabilmente por um valor superior ao que seria recuperado através do uso ou da venda deles.

A reavaliação da Cesp evidenciou que cinco de suas seis usinas somam R$ 9,5 bilhões em valor recuperável. A cifra representa as receitas que as unidades são capazes de gerar; ou o montante que a empresa receberia se os contratos de concessão não fossem renovados, e as hidrelétricas entregues ao poder público. Há muito tempo as incertezas sobre a permanência da Cesp no comando das usinas castigam sua cotação em bolsa. O impairment deu, inclusive, uma notícia formidável para os acionistas. Prova disso é que, nos três dias seguintes à divulgação do resultado, em 31 de março, as ações da elétrica subiram quase 10%. “Os investidores perceberam que o valor potencial de ressarcimento era muito maior do que o estimado antes”, avalia Reginaldo Alexandre, presidente da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimentos do Mercado de Capitais em São Paulo (Apimec SP).

Há um lado curioso nessa história. O mesmo teste de impairment que empolgou o mercado revelou que a usina de Porto Primavera, na divisa entre os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, não tem potencial para gerar o retorno previsto. Em situações como essa, de superavaliação, a contabilidade exige a retirada da gordura por meio da constituição de provisão de perdas. A companhia seguiu a regra e apurou prejuízo de R$ 2,35 bilhões em 2008. Não fosse pelo IFRS, o lucro seria de R$ 115 milhões — o que propiciaria a distribuição de dividendos.

O teste de impairment também descortinou dados sobre a Vale. O cálculo deixou claro que o valor de uso da Inco, equivalente à estimativa dos benefícios futuros a serem produzidos pela subsidiária canadense comprada em 2006, era inferior ao valor contábil somado ao “goodwill” (o ágio pago na aquisição). É o mesmo que dizer que, no fim de 2008, a Inco valia menos do que a Vale desembolsou por ela. Isso obrigou a mineradora a abater R$ 2,4 bilhões do lucro líquido. A baixa contábil é reflexo da desvalorização do níquel no mercado internacional e ilustra como o nosso padrão contábil é, hoje, mais fiel à realidade. “O impairment alterou o resultado da empresa e mudou nossa base para a avaliação da companhia”, observa Leila Maria Santos de Almeida, chefe do departamento de análise da Lopes Filho.

Enquanto algumas empresas tiveram seus lucros devorados pelo IFRS, outras registraram efeito inverso. O fim da amortização do ágio, decretado pela Lei 11.638, incrementou os resultados de diversas companhias no primeiro trimestre. O lucro líquido da administradora de shopping centers Multiplan saltou 240% ante igual período do ano passado, para R$ 44,1 milhões — já considerando os resultados dos dois anos no novo padrão contábil. Situação semelhante aconteceu com a BRMalls, que obteve lucro líquido de R$ 36,9 milhões, 262% maior.

Além de novas informações, o IFRS trouxe facilidades. Está prestes a ser enterrada a necessidade de se fazer uma série de ajustes para a comparação de uma companhia brasileira com uma concorrente estrangeira. Os analistas tinham de desconsiderar, por exemplo, os planos de stock options dos balanços das empresas de fora. Isso não precisa mais ser feito. O pronunciamento CPC 10 tornou obrigatória a divulgação das transações com pagamento baseado em ações. Ou seja, é possível verificar o efeito das stocks options sobre os resultados e o balanço patrimonial, como ocorre com as estrangeiras usuárias do IFRS. “Tínhamos um cuidado maior para ajustar os números”, explica Julio Kogut, analista da gestora carioca Dynamo.

Os benefícios do IFRS, no entanto, ainda estão longe de serem reconhecidos por todos. “Não é possível afirmar se já temos efeitos positivos decorrentes da mudança contábil”, diz a analista Carolina Rocha, da gestora de recursos Quest, de São Paulo. “O que temos hoje é a dificuldade trazida pela novidade.” Estamos em pleno processo de conversão às normas internacionais. Vários pronunciamentos do CPC virão ao longo de 2009. As áreas de pesquisa de corretoras e gestoras de recursos, portanto, se ocupam com a revisão de premissas e a reforma de modelos de análise para o cálculo de preços justos. Devido à complexidade da adaptação, existe até quem mantenha distância do mundo do IFRS. Bruno Carvalho, analista da Prosper Corretora, prefere acompanhar o desempenho da Vale nos balanços apresentados conforme o padrão contábil norte-americano, o US Gaap. Por ter ações negociadas na Bolsa de Valores de Nova York, a mineradora também fala o idioma contábil local. “Fica muito complicado usar a contabilidade brasileira com tantas modificações”, admite.

“Estamos estudando caso a caso para entender quais serão os impactos de cada alteração”, comenta Luciana Leocádio, chefe da área de análise da corretora Ativa. O aproveitamento total das novidades depende do empenho dos profissionais de análise em aprender os pronunciamentos do CPC. “O novo padrão está baseado em conceitos e não em regras definidas. A visão do analista também precisa mudar”, observa Leila, da Lopes Filho. Nunca a observação crítica das informações financeiras e das numerosas notas explicativas foi tão importante como agora.

FLUXOS DE CAIXA MAIS COMPARÁVEIS

Se a obtenção de dados mais transparentes e comparáveis sobre as companhias era o objetivo da adoção do IFRS no País, podemos dizer que as metas começam a ser alcançadas. Vide as demonstrações de fluxo de caixa (DFCs), introduzidas pela Lei 11.638, de 2007, e regulamentadas pelo CPC, em 2008. Pela primeira vez, temos, de forma padronizada na contabilidade brasileira, uma demonstração cuja missão é apresentar os dados sobre o fluxo de caixa de uma companhia — informações essenciais para que analistas e investidores tenham base para avaliar o potencial de geração de caixa e as necessidades de liquidez de um negócio.

É verdade que a DFC não é algo totalmente novo. As companhias listadas nos níveis diferenciados de governança corporativa, além de algumas voluntárias e outras por exigência de reguladores setoriais, já divulgavam suas DFCs. A diferença é que agora a elaboração da demonstração tem regras válidas para todas elas. Até então, eram adotadas as orientações do Financial Accounting Standards Board (Fasb), emissor das normas norte-americanas; ou do International Accounting Standards Board (Iasb), emissor das normas internacionais introduzidas no País; ou até mesmo uma mescla dos dois modelos. Esse efeito Babel acabou com a edição do CPC 03. “Para o analista que acompanha a geração de caixa de uma companhia, as informações oferecidas hoje são muito mais explícitas e comparáveis”, avalia André Ferreira, sócio da auditoria Terco Grant Thorton.

Projeções como a de geração de caixa sempre foram levadas em conta na avaliação de empresas. Mas, antes, quando se deparavam com uma companhia sem DFC, os analistas recorriam a outros demonstrativos. Pinçavam dados das demonstrações de resultado (DRE) e da extinta demonstração das origens e aplicações dos recursos (Doar). A consequência era um processo trabalhoso, já que exigia do analista, por exemplo, desconsiderar do lucro apresentado pela DRE todos os eventos não caixa, como depreciação e amortização de ativos. (Y.Y.)


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